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Espaço Vivo

Aqui é uma hospedagem coletiva, onde você pode conhecer fluxos, trilhas e colaborações de outros autores e artistas. Entre e passeie por novas formas, textos e histórias. Antes de chegar nesse nome, "Espaço Vivo", passeei por outros. Caminhei por Criadoria, Imaginâncias e Espaço do Poetizar. E deixei que o movimento e a abertura para o que é Vivo. Entre e fique à vontade. Respire, relaxe e aproveite.

 

Enquanto arrumava a casa, lembrava do dia em que ela me contou que já tinha escondido a sujeira debaixo do tapete para esperar a visita de última hora. Eu sempre duvidei se era folclore. Agora, ela seria a visita, porém, uma visita planejada, que eu esperei por muito tempo. Eu continuava no mesmo bairro, na mesma cidade, quase na mesma rua. Ela tinha batido asas, literalmente, para a cidade do Plano Piloto. Nossos voos ficaram distantes, mas essa amizade tão única, carregada de memórias, se bastava no amor. A cada reencontro, ainda que esporádico, as mesmas risadas, a mesma emoção, e a conversa continuava de onde parou.


Varri cada canto, perfumei a casa, comprei vaso de flor, forro de mesa, aquelas coisas miúdas de mineiro, para receber a minha Elaine. Aquela de tantos folclores, do carnaval de Diamantina, das cantorias, do "Negro Gato" no violão, das trocas no trabalho, das palhaçadas na pista do Cassino Dancing Show e do colo na madrugada, no momento do sufoco. Expectativa de quem tem muito a contar e mais ainda a ouvir, afinal, em dez anos, muito se vive. Ela chegou com um presente delicado e uma garrafa de vinho.


Um abraço apertado jogou para longe a saudade da presença cotidiana que já experimentamos por tantos anos. Procurei o abridor de garrafa elétrico que jurava ter em casa, mas certamente havia sido esquecido na casa de alguém. Eu já não me lembrava quando tinha sido a última reunião na casa de amigos.


Só encontrei o saca-rolhas manual no fundo da gaveta. O tema da conversa era justamente a força feminina, nossas lutas e conquistas, e, logo ali, naquele momento, a gente não podia esmorecer. A ponta afiada da espiral perfurou a rolha, mas entrou torta. Frustração! Passei a garrafa para a Elaine, que também não conseguiu acertar o rumo. Não é possível! Duas mulheres tão maduras e decididas não conseguem abrir uma garrafa de vinho? "Isso não é força, é jeito!"


Pedimos socorro ao porteiro, que, definitivamente, não ajudou em nada. A vontade do vinho só aumentava. Virou uma questão de honra. Frustradas com a nossa incompetência, pedimos ajuda à vizinha, que nos deu a dica da pressão. Bastou uma batidinha de leve no fundo da garrafa com um pano na parede e a rolha saiu com certa facilidade. Era simples! Era como a vida da gente! Um tanto de história envasada pelo tempo, relembrada ali, num brinde e com gosto de quero mais. Tem coisas que a gente não sabe, mas aprende, né, Elaine?


Simples assim!

 

 

 

Sem que eu perceba, lá vem o tempo, garoto agitado, tirando dos bolsos lembranças coloridas, fazendo arco-íris em minha mente. Mergulham na minha pele, escorrem pelos dedos. Uma vai enlaçando a outra até formar um elo do mais fino trato. No pátio da memória, brincam de fazer lembrar, um começo que não tem fim.


É assim que tempos passados vem costurar os meus dias, e eu revisito coisas doces de minha vida, entre elas, a Dorinda.


Sempre que me lembro dela, sinto como se algo pontudo fosse entrando no peito, fazendo quase uma dor. Imagino-a tão real que nem parece ter ido para a outra margem há tantos anos. Conheci-a ainda criança e frequentei sua casa até a adolescência. Vivia na solidão de viúva, sozinha e guerreira, temida e mal-amada.


Há pouco, acabei de jantar e senti na boca o gosto da comida de Dorinda. Era de marmita, sobra de almoço, mas que adquiria um gosto especial. Depois da missa de domingo, à noite, eu passava em sua casa, mais por hábito do que saudade. Era certa aquela jantinha guardada para mim no fogão de lenha. Havia sempre um tomatinho maduro, colhido na horta, esmagado, colorindo o arroz.


O que me incomoda nessas lembranças é saber que só depois de tantas perdas, dei-me conta das preciosidades que ficaram sem a devida atenção. Desejaria trazê-la de volta para contar as histórias que queria saber quando perguntava: – Tem alguma notícia nova da rua? Depois de contar a novidade, eu estenderia a mão para presenteá-la com um doce gostoso, e veria seus olhos se iluminarem e seu rosto se abrir num sorriso de contentamento.


De onde estou, neste espaço de lembranças tão distanciadas no tempo, penso nos sons que ela fazia: o arrastar das chinelas, pois era assim, no feminino, que se referia aos chinelos gastos de lã grossa; ao trancar a portinha do fogão à lenha; ao cerrar as janelas da casa e colocar o “rosário” na cabeceira da cama.


Foi-se a Dorinda, mas sua lembrança permanece em mim.

 

O Coxo

Catulo da Paixão Cearense

 

Certa vez

Um homem descortês

Que vendo um coxo

Passar amuletado

Chamou-lhe: sacripante,

Estúpido, ignorante, malcriado!

E o coxo, sem dar mostras de zangado

Seguia o seu caminho, paciente

Que quase nem parecia o insultado!

E seguia, e seguia, e apenas traduzia

A sua quase compaixão em um muxoxo.

Quando o homem descortês, contrariado, por ver que o insultava sempre em vão

Começou a chamá-lo: “Ó coxo, ó coxo!”

Pois o coxo, que não se molestara

Com os insultos que o homem lhe atirava,

Ficou como uma fera,

A ponto de agredi-lo com a muleta

Batendo-lhe na cara.

Somente porque o homem lhe chamara

De coxo, exatamente aquilo que ele era.

 

Nesses tempos de política rasteira e acompanhando alguns debates no YouTube, onde os candidatos xingam publicamente uns aos outros e a carapuça despenca, não tem como não se lembrar deste poema de Catulo da Paixão Cearense, que retrata a história de um deficiente que foi xingado de tudo que é nome, porém ao ser chamado de coxo, que é justamente que ele era, virou uma fera.

 
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