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Memória é sentimento - Idarci E. Lasmar


Sem que eu perceba, lá vem o tempo, garoto agitado, tirando dos bolsos lembranças coloridas, fazendo arco-íris em minha mente. Mergulham na minha pele, escorrem pelos dedos. Uma vai enlaçando a outra até formar um elo do mais fino trato. No pátio da memória, brincam de fazer lembrar, um começo que não tem fim.


É assim que tempos passados vem costurar os meus dias, e eu revisito coisas doces de minha vida, entre elas, a Dorinda.


Sempre que me lembro dela, sinto como se algo pontudo fosse entrando no peito, fazendo quase uma dor. Imagino-a tão real que nem parece ter ido para a outra margem há tantos anos. Conheci-a ainda criança e frequentei sua casa até a adolescência. Vivia na solidão de viúva, sozinha e guerreira, temida e mal-amada.


Há pouco, acabei de jantar e senti na boca o gosto da comida de Dorinda. Era de marmita, sobra de almoço, mas que adquiria um gosto especial. Depois da missa de domingo, à noite, eu passava em sua casa, mais por hábito do que saudade. Era certa aquela jantinha guardada para mim no fogão de lenha. Havia sempre um tomatinho maduro, colhido na horta, esmagado, colorindo o arroz.


O que me incomoda nessas lembranças é saber que só depois de tantas perdas, dei-me conta das preciosidades que ficaram sem a devida atenção. Desejaria trazê-la de volta para contar as histórias que queria saber quando perguntava: – Tem alguma notícia nova da rua? Depois de contar a novidade, eu estenderia a mão para presenteá-la com um doce gostoso, e veria seus olhos se iluminarem e seu rosto se abrir num sorriso de contentamento.


De onde estou, neste espaço de lembranças tão distanciadas no tempo, penso nos sons que ela fazia: o arrastar das chinelas, pois era assim, no feminino, que se referia aos chinelos gastos de lã grossa; ao trancar a portinha do fogão à lenha; ao cerrar as janelas da casa e colocar o “rosário” na cabeceira da cama.


Foi-se a Dorinda, mas sua lembrança permanece em mim.

 
 
 

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